Sob a ameaça de uma metralhadora, uma mulher teve de indicar aos rebeldes em Cabo Delgado, norte de Moçambique, as casas da aldeia de Diaca onde moravam raparigas.
Por entre cerca de 200 meninas com idades entre 12 e 17 anos, escolheram quem queriam sequestrar, enquanto as mães imploravam para que as levassem a elas próprias e deixassem as crianças e jovens para trás.
Mas os homens armados diziam que não queriam as mais velhas e investigações indicam porquê: as vítimas de Cabo Delgado terão servido a rebeldes para fornecer redes de tráfico de mulheres que se estendem da Europa ao Golfo Pérsico.
O relato de Diaca diz respeito a um dos ataques ao distrito de Mocímboa da praia em 2020 e foi divulgado hoje pela organização não-governamental (ONG) Human Rights Watch (HRW),
num comunicado em que estima ainda haver 600 mulheres desaparecidas em Cabo Delgado.
Segundo relatos de sobreviventes à HRW, houve mulheres obrigadas a “casar” com os sequestradores, outras foram escravizadas e vítimas de abuso sexual, outras ainda foram vendidas a "combatentes estrangeiros" por valores equivalentes a entre 550 e 1.600 euros.
"Mulheres e meninas estrangeiras sequestradas, em particular, foram libertadas depois de as famílias pagarem resgates", acrescentou a ONG.
A dimensão dos raptos ganhou visibilidade em abril, com uma investigação do Observatório do Mundo Rural (OMR) de Moçambique: na altura, o investigador João Feijó disse à Lusa que centenas terão sido selecionadas para redes de tráfico de mulheres internacionais, com um alcance tão vasto como da Europa até ao Golfo Pérsico.
O OMR ouviu testemunhos "das meninas mais bonitas" que "ao fim de uma sessão de doutrinação iam dizer às companheiras que tinham sido selecionadas para ir estudar para a Tanzânia".
Hoje, Mausi Segun, diretor para África da HRW, renova os apelos, dirigidos aos líderes dos grupos rebeldes, para "libertarem todas as mulheres e meninas em cativeiro", e às autoridades moçambicanas, para que deem um tratamento adequado às vítimas.
"As autoridades moçambicanas fizeram alguns progressos no resgate de centenas de vítimas de sequestro", mas mantiveram-nas "incomunicáveis durante semanas, sem acesso às famílias, aparentemente para triagens de segurança", relatou.
A província de Cabo Delgado é rica em gás natural, mas aterrorizada desde 2017 por rebeldes armados, sendo alguns ataques reclamados pelo grupo extremista Estado Islâmico.
O conflito já provocou mais de 3.100 mortes, segundo o projeto de registo de conflitos ACLED, e mais de 817 mil deslocados, de acordo com as autoridades moçambicanas.
Desde julho, uma ofensiva das tropas governamentais com o apoio do Ruanda, a que se juntou depois a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), permitiu
aumentar a segurança, recuperando várias zonas onde havia presença de rebeldes, nomeadamente a vila de Mocímboa da Praia, que estava ocupada desde agosto de 2020.(Lusa)